Achados arqueológicos descritos num livro que acaba de chegar ao Brasil, bem como uma série de pesquisas históricas cuidadosas, podem ajudar a traçar um quadro mais claro sobre a vida de São João Batista, o profeta venerado pelos cristãos como o responsável por preparar a vinda de Jesus. O arqueólogo britânico Shimon Gibson encontrou, nos montes perto de Jerusalém, uma gruta com desenhos que retratariam o Batista e que teria sido usada, no século 1 da Era Cristã, para rituais de purificação idênticos ao batismo conferido pelo santo.
Ao mesmo tempo, Gibson e outros especialistas nas origens do cristianismo estão questionando a idéia de que o Batista teria reconhecido imediatamente a superioridade de Cristo. É possível que Jesus tenha começado como discípulo de João e só depois iniciado sua própria missão, mantendo, no entanto, um profundo respeito pelo antigo mentor e incorporando aspectos da pregação de João em seu ministério.
Embora essa possibilidade ainda esteja em debate, ninguém coloca em discussão a existência histórica de João Batista e o fato de ele ter batizado Jesus no rio Jordão, pouco antes do ano 30 de nossa era. “O batismo de Jesus certamente é um fato histórico, especialmente se levarmos em conta o chamado critério do constrangimento”, diz Luiz Felipe Ribeiro, professor da pós-graduação em história do cristianismo antigo da Universidade de Brasília (UnB) que está concluindo seu doutorado na Universidade de Toronto (Canadá).
O critério do constrangimento é uma das principais ferramentas usadas pelos historiadores para decidir se um fato narrado nos Evangelhos realmente aconteceu com Jesus. A idéia é que os evangelistas não teriam motivos para criar uma narrativa que pudesse causar problemas para sua pregação por ser potencialmente constrangedora. Ao mesmo tempo, sentiriam a necessidade de relatar a situação embaraçosa nos casos em que ela era de conhecimento geral e, portanto, não poderia ser simplesmente omitida.
O batismo de Jesus por João é um desses casos, afirma Emilio Voigt, doutor em Novo Testamento e coordenador de ensino à distância da Escola Superior de Teologia de São Leopoldo (RS). “Se o batismo de João é para o arrependimento [dos pecados], porque Jesus precisaria ser batizado? Como Jesus, o Messias, poderia ser batizado por alguém teoricamente inferior a ele?”, diz o pesquisador. Segundo Voigt, a tradição cristã resolve isso por meio do “testemunho” de João – afirmações do profeta de que ele teria vindo apenas para proclamar a chegada de Jesus e de que, na verdade, ele não seria digno de batizá-lo.
A caverna
E como seria o batismo de João? O mais provável é que a cerimônia tenha se inspirado nas cerimônias judaicas de banhos purificadores, as quais envolviam a imersão total do corpo em água. (Não é à toa que o apelido de “Batista” vem do verbo grego que designa o ato de “mergulhar”, “submergir”.) A diferença, no entanto, é que os banhos judaicos eram realizados sempre que a pessoa precisava remover certas formas de impureza ritual, enquanto o batismo de João, até onde sabemos, era uma cerimônia única, que acontecia de uma vez por todas.
Além disso, há indícios de uso intermitente do lugar durante todo o século 1, como restos de cerâmica, mas nenhum sinal de que a ocupação tivesse sido doméstica (não há utensílios de cozinha ou fogo, por exemplo). Finalmente, as paredes são adornadas com desenhos misteriosos, atribuídos pelos arqueólogos à época bizantina (em torno do século 6). Há cruzes e outras formas de iconografia cristã e, o mais importante, um homem com roupa de peles, cajado nas mãos e um aparente cordeiro a seu lado. Para Gibson, seria uma representação tosca de João Batista ao lado do “Cordeiro de Deus”, ou seja, Jesus.
Com base nesses indícios, Gibson e seus colegas, como James Tabor, também da Universidade da Carolina do Norte, propõem que os cristãos bizantinos haviam herdado uma tradição segundo a qual João havia iniciado suas atividades como Batista naquela gruta antes de ir para o rio Jordão –- tradição que as estruturas de banhos rituais poderiam confirmar.
Outros pesquisadores ainda encaram com ceticismo as propostas de Gibson e Tabor, mas um ponto em comum com os escavadores da gruta é a relação complexa entre João e Jesus (e os discípulos de ambos) que as diferenças entre os Evangelhos deixam entrever.
No Evangelho de Marcos, por exemplo, João simplesmente batiza Jesus, sem uma conversa entre os dois que deixe clara a posição de submissão do profeta a Cristo. O Evangelho de Mateus traz a afirmação explícita, por parte de João, de que Jesus é que deveria batizá-lo, e não o contrário. Já o Evangelho de Lucas primeiro menciona a prisão do Batista para só depois falar do batismo de Jesus — sem dizer quem foi o batizador. Finalmente, o Evangelho de João, o mais radical nesse sentido, não menciona em nenhum momento o batismo de Cristo e, aliás, nem se refere a João como "o Batista".
"É interessante como, conforme a compreensão dos primeiros cristãos sobre Jesus vai evoluindo e ele passa a ser encarado cada vez mais como divino, a necessidade de tornar clara a superioridade de Jesus em relação a João aumenta. Em Marcos, que é o Evangelho mais antigo, isso ainda não é um problema tão grande", diz Luiz Felipe Ribeiro.
Os cristãos estão acostumados a ver Cristo e seu Precursor como parentes por parte de mãe, graças à história sobre a gravidez da idosa Isabel, aparentada a Maria, que aparece no Evangelho de Lucas. No entanto, o consenso entre os historiadores é que as tradições sobre essa relação próxima desde o nascimento apareceram mais tarde entre as comunidades cristãs e provavelmente não refletem a história familiar de Jesus e João.
"As narrativas da infância representam o último estrato da tradição dos Evangelhos. As lendas sobre os nascimentos miraculosos de João Batista e de Jesus buscam interpretar a relação entre ambos a partir da messianidade de Jesus e a partir do fato de que ambos entraram em contato historicamente", diz Paulo Augusto Nogueira, da Universidade Metodista de São Paulo.
Impacto decisivo
"A exata relação histórica entre João Batista e Jesus é difícil de precisar, porque os textos dos Evangelhos, todos eles, são uma combinação de elementos históricos e interpretações feitas posteriormente no âmbito das comunidades cristãs", lembra o padre Léo Zeno Konzen, coordenador do curso de teologia da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (RS). No entanto, o que se pode dizer com toda a certeza, pondera o pesquisador, é que Jesus apoiou o movimento de João e, ao decidir ir até o Jordão para ser batizado por ele, deu um passo decisivo para deixar Nazaré para trás e tornar-se alguém com uma missão religiosa.
"Se aceitarmos que Jesus viveu em tudo a condição humana, a hipótese de que João Batista tenha influenciado Jesus para mudar seu modo de inserir-se na realidade parece válida e até muito provável. Os evangelistas todos mostram que o encontro de Jesus com o movimento de João Batista constitui um divisor de águas na vida do Mestre dos cristãos", diz o teólogo. Para Konzen, é possível que um evento seguinte — a prisão de João Batista a mando de Herodes Antipas, tetrarca (governador) da Galiléia — tenha sido o "gatilho" final que iniciou a pregação de Jesus.
O que aconteceu entre o batismo e a prisão do Batista é motivo de muito debate entre os historiadores. Uma das teses mais bem articuladas é a do padre americano John P. Meier, autor da monumental obra "Um Judeu Marginal" (publicada em volumes e ainda não concluída) sobre o Jesus histórico. Para Meier, Jesus teria passado algum tempo entre os discípulos de João, até adquirir uma nova consciência sobre seu papel messiânico e tornar-se um profeta independente. Segundo o pesquisador americano, Jesus concordava com João sobre a proximidade de um julgamento definitivo do povo de Israel por Deus, mas dava ênfase à misericórdia divina que estava sendo estendida até aos judeus mais pecadores diante desse "Juízo Final".
"Essa pode ser considerada uma hipótese plausível, mas não temos evidências concretas a respeito. Em todo caso, é interessante que todos os comentários de Jesus a respeito de João [nos Evangelhos] são positivos", afirma Emilio Voigt.
Jesus, o Batista?
Outra pista interessante que une o ministério dos dois vem do Evangelho de João (atribuído ao apóstolo João, que não tem relação nenhuma com João Batista). O evangelista diz que vários dos discípulos de Cristo seriam originalmente seguidores de João, e que Jesus e seus apóstolos também teriam batizado pessoas durante a vida de Cristo. Para Meier, isso sugere que o batismo cristão seria um ritual transmitido diretamente de João a Jesus, e de Jesus a seus apóstolos e às futuras gerações cristãs.
O Evangelho de João também relata que os discípulos do Batista teriam reclamado com seu mestre, dizendo que estavam perdendo seguidores para Jesus. "Essa narrativa é constrangedora, portanto merece algum crédito", afirma Paulo Nogueira. "Parece que, por um curto espaço de tempo, o discípulo começou a fazer mais sucesso que seu mestre", diz ele. Voigt, no entanto, lembra que o Evangelho de João, escrito muito tarde (provavelmente por volta do ano 100), é visto com desconfiança por quem tenta estudar Jesus e João como personagens históricos.
Outra possibilidade, lembra Luiz Felipe Ribeiro, é que o suposto ciúme entre os dois grupos reflita rivalidades entre cristãos e seguidores de João após a morte de seus respectivos mestres. Aliás, diz o pesquisador, há indícios de que uma seita de veneradores do Batista continuava a existir mais de um século após a morte de seu mestre.
Decapitado
Controvérsias à parte, uma outra certeza em relação a João Batista é que sua pregação, tal como a de Jesus, não agradou nem um pouco aos poderosos de seu tempo. Os dois relatos que existem sobre o fim do profeta — nos Evangelhos e na obra do escritor judeu Flávio Josefo — atribuem sua morte, por decapitação, ao poderoso Herodes Antipas, que teria mandado aprisionar e depois executar João na fortaleza de Maqueronte. A motivação, no entando, difere nas duas versões.
Para o Novo Testamento, Herodes teria sido criticado publicamente por João por ter se casado com a ex-mulher de seu irmão. A nova esposa do tetrarca, ofendida, teria conseguido a cabeça do profeta como reparação. Já Josefo afirma que Herodes Antipas, temendo que a pregação do Batista levasse o povo à revolta, teria decidido eliminá-lo antes que seus medos virassem realidade.
"Josefo provavelmente é mais confiável", avalia Luiz Felipe Ribeiro. "João Batista, por suas ações, fazia parte de um grupo de profetas que tentavam reencenar momentos-chave na história de Israel. Ao ir para o deserto e para as margens do rio Jordão, era como se ele trouxesse de volta a chegada dos israelitas à Terra Prometida" — e isso implicava uma conotação de independência para os judeus que Antipas, como fantoche dos romanos, não poderia permitir.
Legado
No fim das contas, a morte de João, tal como a de Jesus, definiu seu legado. "Na minha opinião, ele pregava a vinda do mais forte, que poderia ser Deus ou outro mediador escatológico [do fim dos tempos], o qual batizaria com fogo, ou seja, o juízo", diz Paulo Nogueira. "Após a morte dele, os seguidores de Jesus reinterpretaram a pregação de João Batista, considerando que o mais forte era Jesus e que o fogo era o símbolo do Espírito Santo. Para nós pode parecer distorção ou falsificação, mas creio que era uma forma de cultivar a memória e a veneração pelo mestre de Jesus."
Para o padre Léo Konzen, apesar das incertezas sobre a relação histórica entre Jesus e João, não há motivo para achar que a fé cristã sai prejudicada por hipóteses como a da influência do Batista sobre Cristo. "Creio que o processo de formação das pessoas de fé cristã deve ajudar a perceber a riqueza que se encontra justamente nesse processo de interpretar os acontecimentos. Não podemos ler a Bíblia ao pé da letra. Como pessoas de fé, nossos antepassados vivenciaram processos muito criativos de leitura dos acontecimentos, atribuindo-lhes significados que, à primeira vista, não eram perceptíveis nem imagináveis. A Bíblia toda foi construída assim", pondera.
Fonte: G1