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Estudo acha sinais de “guerra santa” entre pagãos e cristãos na Europa medieval

Foto: Reprodução

Túmulo luxuoso indica resistência de elite pagã a cristianização na Alemanha do século 12. Guerreiros eslavos adoravam deus da guerra de quatro cabeças; luta durou décadas.

Por volta do ano 1100 da nossa era, as tribos eslavas que viviam na fronteira da Alemanha com a Polônia estavam literalmente entre a cruz e a espada. Enfrentando ataques militares e missionários de seus vizinhos cristãos, a elite das tribos parece ter decidido reafirmar sua identidade pagã com túmulos luxuosos, que mostravam seu poderio e sua determinação de resistir ao invasor. Essa é a tese de um arqueólogo alemão, cujo trabalho está ajudando a entender os últimos pagãos da Europa Ocidental.

Reconstrução de túmulo de nobre pagão do século 12 em Usedom, na Pomerânia (nordeste da Alemanha) (Foto: S. Fiedler/Divulgação)

“Todos os vizinhos deles já tinham virado cristãos e eram governados por reis ou, no caso dos alemães, por um imperador”, explica Felix Biermann, do Departamento de Pré-História da Universidade Humboldt, em Berlim. “Por outro lado, as tribos eslavas dos rúgios, lutícios e obodrítios tinham estruturas políticas descentralizadas. Eles eram comandados por uma elite de guerreiros e cavaleiros, cujo poder era baseado em alianças militares. Esses chefes construíam grandes fortalezas, feitas de madeira e terra e que chegavam a ter até 400 metros de diâmetro”, diz Biermann.

Escavações recentes na Pomerânia (nordeste da Alemanha) e nas regiões polonesas que fazem fronteira com ela revelaram um estranho aumento de sepulturas suntuosas no final do século 11 e começo do século 12. Antes, os membros das tribos eslavas eram simplesmente cremados, mas nessa época eles passam a ser enterrados, alguns deles com muita pompa. Ao analisar vários desses túmulos de elite, como o de Usedom, que fica numa ilha do mar Báltico, Biermann verificou uma série de características comuns.

Casa dos mortos

Primeiro, os túmulos viram uma espécie de “casa” dos mortos, recobertos com estruturas de madeira e pedra e formando “morros” artificiais, que podiam ser vistos a uma certa distância. Em segundo lugar, os defuntos ganham oferendas caras: espadas longas com cabo decorado, moedas de ouro e prata, tecidos finos, esporas de ferro e chicotes (ambos lembretes de sua condição de cavaleiros).

Espada longa e tecido recoberto com ouro achados em túmulo de Wusterhusen (Alemanha) (Foto: F. Biermann.)

Há também bacias de bronze finamente decoradas, usadas para lavar o rosto e as mãos dos nobres. “É uma maneira de dizer que eles eram uma elite refinada, com hábitos sofisticados à mesa”, afirma o arqueólogo alemão. As mulheres da elite também recebiam ricos presentes em sua viagem para o além-túmulo: anéis e colares de metal precioso e amuletos feitos com dente de castor. Nessa mesma época, parece surgir uma certa separação espacial entre esses túmulos e os dos “plebeus” das tribos – outro sinal de que a elite pagã estava tentando reforçar seu poderio.

E é aí que entra a tese de Biermann. O curioso é que o mesmo fenômeno – o repentino aparecimento de túmulos pagãos suntuosos – acontece justamente antes da conversão dos escandinavos e dos ingleses ao cristianismo, nos século 7 e 10 ou 11, respectivamente. O arqueólogo aposta que o exagero cerimonial entre as tribos eslavas servia para mostrar que o paganismo estava vivo e vigoroso diante da invasão cristã. Também pode haver uma influência indireta de pagãos vikings, que comerciavam com a região durante as décadas anteriores ao surgimento dos túmulos luxuosos.

 

Vasilha de bronze do túmulo de Usedom, século 12 (Foto: Divulgação)

Tanto é assim que, após um breve florescimento de algumas décadas, a tradição tumular desaparece a partir do último quarto do século 12. É bom lembrar que a orientação da Igreja medieval era não colocar nenhum objeto em túmulos de cristãos – um hábito normalmente associado à crença numa vida após a morte com combates, festas e outras situações iguais às encontradas no mundo dos vivos.

Templo destruído

Até essa época, os eslavos da região adoravam deuses capitaneados por Svantevit, um guerreiro divino representado com três ou quatro cabeças (nesse caso, cada uma delas ficava voltada para um dos pontos cardeais), cujo culto também era associado à fertilidade da terra. Não por acaso, Svantevit era retratado com uma espada na mão e um chifre oco (usado como taça) na outra, montado num cavalo branco – mais ou menos como os guerreiros pagãos que o adoravam.

Deus de quatro caras Svantevit, adorado pelas tribos eslavas da região (Foto: Reprodução)

“A religião servia como o principal fator de integração dos líderes pagãos. Eles tinham um importante centro conhecido como Rethra, que era uma mistura de fortaleza e oráculo militar, onde eles pediam o apoio dos deuses para a guerra. Esse local foi destruído por volta de 1070 e o centro militar e religioso das tribos se deslocou para o templo de Svantevit num local chamado Arkona”, conta Biermann.

De acordo com o arqueólogo, a resistência em Arkona não durou muito. As pressões para se converter ao cristianismo eram muitas. Uma delas foi a chegada de missionários liderados pelo bispo alemão Otto de Bamberg, que chegaram à Pomerânia em 1124. Cruzados alemães, poloneses e dinamarqueses também organizaram uma série de ataques à área. Finalmente, o templo de Arkona foi atacado pelo rei Waldemar I da Dinamarca.

“Temos boas informações sobre o cerco de Arkona graças à descrição feita pelo monge dinamarquês Saxo Grammaticus. Os pagãos da tribo dos rúgios estavam defendendo os muros da fortaleza, mas um soldado dinamarquês conseguiu abrir um túnel debaixo do portão e colocar fogo na muralha, que veio abaixo. Os homens de Waldemar destruíram o templo e jogaram a imagem de Svantevit no mar”, diz Biermann. “A destruição do templo é considerada um símbolo do triunfo do cristianismo na região.”

Apesar dos combates, não houve um extermínio da população pagã local. Convertidos ao cristianismo, eles acabaram se miscigenando com colonos alemães que chegaram à região no fim do século 12 e começo do século 13. “Alguns dos membros da elite pagã se tornaram cristãos, como os membros da família Greif, que viraram duques e governaram a Pomerânia até o século 17”, conta o arqueólogo alemão.

Cruzadas no leste

A destruição do templo de Arkona marcou o desaparecimento definitivo do paganismo na Europa Ocidental. No entanto, o culto a divindades não-cristãs continuou resistindo durante quase dois séculos a leste.

“No território da Prússia Oriental, que hoje pertence à Rússia e à parte nordeste da Polônia, a Ordem dos Cavaleiros Teutônicos lançou uma ‘missão com a espada’ a partir dos anos 1230”, diz Felix Biermann. Os Cavaleiros Teutônicos já tinham lutado na Palestina durante as Cruzadas e, com isso, expandiram sua ação contra inimigos da fé na própria Europa. Depois da vitória cristã nessa região, restava ainda uma grande potência pagã na Europa Oriental, a Lituânia. Nesse caso, a política acabou sendo o fator-chave: o grão-duque da Lituânia teve a chance de virar também rei da Polônia caso aceitasse ser batizado para casar com uma princesa polonesa. O grão-duque topou e foi coroado como rei Ladislau I Jagiello.

Em parte pela conversão forçada e em parte pelos interesses políticos envolvidos no processo, os costumes cristãos demoraram para dominar totalmente essa região. “Em Usedom, temos enterros do meio do século 13, no cemitério de uma igreja, que ainda mostram objetos simples mas ligados à tradição pagã, como armas e moedas”, afirma Biermann.

Fonte: G1

Thalles Brandão

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