Lá se vão quase 20 anos desde que, pela primeira vez, evangélicos brasileiros entraram em massa em Portugal. Naquela época, 1989, igrejas de todos os segmentos teológicos começaram a enviar para a “terrinha” batalhões de pastores e missionários, impelidos pela motivação de pregar a Palavra de Deus num dos países de maior tradição católica no mundo. Eles juntaram-se a outros obreiros oriundos do Brasil, sobretudo de denominações tradicionais, que já estavam lá havia tempos. Mas o boom foi alavancado principalmente por grupos avivados e neopentecostais, que levaram consigo o calor da pregação avivada a fim de ganhar para Cristo almas portuguesas. A missão era bem mais ampla: abrir uma larga porta de entrada para os missionários brasileiros no Velho Mundo. A partir de Portugal, sonhavam eles, a secularizada Europa poderia experimentar um avivamento semelhante àquele que ocorreu por aqui por volta dos anos 1960 e 70, graças à atuação dos pregadores americanos. A princípio, a estratégia deu certo. Dezenas de igrejas foram abertas, cruzadas evangelísticas foram realizadas, várias agências missionárias se estabeleceram e, nas ruas das principais cidades lusas, como Lisboa e Porto, era possível ver grupos evangelizando os portugueses. Paralelamente, milhares de brasileiros de ascendência lusitana – muitos dos quais, evangélicos – iam tentar a vida em Portugal, movidos pelo sonho da prosperidade na União Européia.
Contudo, ao mesmo tempo em que pregadores carismáticos atraíam multidões, uma onda de polêmicas e mesmo escândalos protagonizados por evangélicos brasileiros espantaram os portugueses. As agressivas formas de evangelização e o ímpeto expansionista de algumas denominações brasileiras em solo lusitano foram decisivos para uma mudança no panorama – e a boa vontade inicial logo cedeu espaço à desconfiança. Processo que atingiu em cheio a Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), que fez de Portugal uma espécie de “cabeça de ponte” fundamental para seu crescimento ao redor do mundo. A implantação da Universal em Portugal ocorreu no início dos anos 1990, nos arredores de Lisboa, e constituiu-se numa etapa importante no avanço em direção aos países africanos de fala portuguesa. Em pouco tempo, a igreja cresceu em popularidade. Contudo, sua pregação, heterodoxa demais para os padrões do Cristianismo português, tratou de colocar a Iurd no centro de um debate sobre a invasão das chamadas “seitas protestantes” e seus supostos malefícios.
Mais tarde, a imprensa portuguesa reproduziu notícias sobre os interesses empresariais da Universal no Brasil. Os jornais também noticiaram que a igreja estava sendo investigada pela Justiça brasileira. Mas foi em 1995 que o caldo entornou de vez. Numa manobra ousada, a igreja tentou comprar o Coliseu do Porto, a mais tradicional casa de espetáculos daquela cidade, para transformá-lo em templo. Ao mesmo tempo, a denominação articulou a formação de uma legenda política, que já tinha até nome escolhido, o Partido da Gente.
Imediatamente, artistas, intelectuais, políticos e grande parte da população expressaram publicamente seu repúdio à iniciativa. Um ruidoso ato público de protesto em frente ao Coliseu foi transmitido ao vivo pela televisão. A confusão foi tão grande que até o então presidente de Portugal, Mário Soares, precisou intervir.
“A partir daquele episódio, as autoridades portuguesas passaram a vigiar muito os grupos evangélicos brasileiros. Há várias igrejas sendo investigadas hoje. Para se ter uma idéia, hoje é quase impossível para elas alugar um prédio e montar um templo”, diz o pastor português Luíz Reis, presidente da Assembléia de Deus de Queluz, cidade a 100 quilômetros da capital. “Mesmo quem aluga andares ou simples salas fica à mercê dos outros condôminos. Se eles decidem retirar a igreja de lá, é só comunicar a prefeitura e ponto final.” Ênfase exagerada nos pedidos de dízimos e oferta, acusações de prática de charlatanismo e denúncias acerca de desvio de verbas das igrejas botaram ainda mais lenha na fogueira.
Barreiras legais – “Não posso ser hipócrita: a presença de certas igrejas brasileiras não ajudou em nada a propagação do Evangelho em nosso país, considerando alguns excessos que foram cometidos em nome do imediatismo”, faz coro o pastor Antônio Pires, presidente da Convenção das Igrejas Batistas de Portugal e um dos diretores da Aliança Evangélica Portuguesa. Segundo o líder, os desmandos praticados por diversos pastores brasileiros criaram má vontade contra todo o segmento evangélico em Portugal. “Abrir uma igreja ficou mais difícil, pois é preciso contornar uma série de barreiras legais”, continua. A própria Universal precisou mudar de nome para conseguir se manter em solo ibérico. Em Portugal, a igreja se chama Centro de Ajuda Espiritual Pare de Sofrer, embora tenha mantido a tradicional pomba branca no centro de um coração vermelho como seu logotipo.
O paulista José Machado, presidente da Igreja Internacional da Graça de Deus em Portugal, diz que atualmente os portugueses são tão desconfiados dos pregadores brasileiros que censuram até a transmissão dos programas radiofônicos: “Certa vez, uma emissora me pediu para não falar em milagres no ar. Eles tinham medo de que estivéssemos inventando coisas e que a rádio sofresse algum tipo de sanção”, lembra. Machado explica ainda que, hoje em dia, o pastor brasileiro deve estar preparado para a confrontação bíblica: “Os portugueses não acreditam em qualquer coisa. São muito desconfiados e exigem que o pastor esteja teologicamente bem preparado. Outra coisa – eles rejeitam pregadores muito espalhafatosos. Hoje, os discretos são mais respeitados”, avisa.
Na opinião do pastor assembleiano Jorge Humberto, vice-presidente da Aliança Evangélica Portuguesa, a atuação desastrada de organizações evangélicas brasileiras, no passado recente, não pode ser responsabilizada, sozinha, pelo atual quadro de indiferença em relação à fé. “Há vários segmentos protestantes em Portugal, e cada um deles sofre os efeitos da pós-modernidade”, aponta. “Algumas igrejas acabam tendo dificuldade para manter seus valores intactos diante do desafio da relativização de princípios. Agora, não há mais branco ou preto, certo ou errado; tudo pode ser relativizado, até o pecado. Lutamos contra isso e as igrejas de brasileiros aqui têm sido chamadas a participar desses debates.” O ingresso do país na União Européia, em 1986 – após as décadas de estagnação da ditadura do ex-presidente Antônio de Oliveira Salazar –, trouxe a prosperidade econômica que tem colaborado decisivamente para o esfriamento espiritual da população portuguesa, tradicionalmente católica.
Crescimento tímido – Lá, como cá, não existem números precisos, mas a quantidade de crentes no país fica em torno de um a dois por cento numa população de 11 milhões – o que daria, no cenário mais otimista, algo como 200 mil protestantes. Os dados são da Aliança, que congrega cerca de 1,2 mil congregações portuguesas. “Mas o número de igrejas, apesar das dificuldades, está crescendo”, informa o pastor Vítor Baía, responsável pelo setor de estatísticas da entidade. Um crescimento lento, é claro, sobretudo se comparado com o do Brasil. Ele mesmo sente na pele o preconceito que atinge os pastores em solo português – fruto, segundo Baía, dos problemas ocorridos na década passada. “Muitas vezes, identifico-me apenas por minha outra ocupação, que é a de técnico em computadores, para não ser rejeitado em determinados círculos.”
De acordo com Lauro Mandira, gerente da Junta de Missões Mundiais (JMM) da Convenção Batista Brasileira, o chamado “evangelismo explosivo” de alguns anos atrás afetou todos os obreiros brasileiros que atuam em Portugal. “Durante mais de cem anos, a JMM tem enviado missionários para trabalhar entre os portugueses, e sempre fomos alvo de grande consideração. Mas com a invasão desordenada para lá, a Igreja brasileira ficou com um conceito negativo”, avalia. Ele sabe que os problemas ocorridos não serão esquecidos tão cedo pelo povo português. “A única forma de reverter isso e ganhá-los para Cristo será mostrar com nossa vida que somos diferentes”, resume.
Embora o trabalho, agora, seja dobrado, as igrejas brasileiras não desistiram de enviar seus missionários. Estima-se que cerca de 300 pastores ligados à Assembléia de Deus no Brasil atuem em Portugal. A maioria prega a Palavra em pequenas salas, atraindo pouca gente. De acordo com o pastor Jorge Humberto, a Aliança Evangélica Portuguesa tem se reunido constantemente, na tentativa de encontrar maneiras de semear a fé evangélica sem repetir os equívocos cometidos por muitos pregadores brasileiros. “Lutamos contra isso e as igrejas de brasileiros aqui têm sido chamadas a participar desses debates”, encerra o religioso.
Fonte: Cristianismo Hoje