Estava zapeando a TV em busca de algo para ver, quando fui surpreendida por um demônio entrando pela minha sala, depois de abandonar o corpo de um homem que ainda tremia na tela. Pobre diabo, pensei, e por um instante fiquei confusa se me referia ao homem ou ao demônio desmoralizado que dele saía com o rabo entre as pernas, apenas porque o pastor falava grosso com ele. Do meu sofá, assisti então à partida atabalhoada de séquitos inteiros de belzebus do corpo de fiéis. Alguns dos mortais exorcizados foram também esvaziados do pouco dinheiro que tinham para sustentar a família, o que talvez não lhes ajude a seguir em frente depois de experiência tão traumática. A banalidade do mal, da filósofa Hannah Arendt, ganha outros sentidos nessas sessões de exorcismo promovidas por algumas igrejas neopentecostais diante das câmeras.
Eu também tive experiências com demônios. Infelizmente, bem menos fáceis de exorcizar do que estes da TV. Nos anos 90, fui incumbida de fazer uma reportagem sobre o diabo. Não consigo lembrar qual era a razão de ter enveredado por tal tema. Algo tinha acontecido, mas não lembro o que era. Recordo de ter partido em busca de pessoas supostamente possuídas por Satã. Buscava os demônios menos descartáveis, aqueles que inspiraram algumas das grandes obras da literatura mundial e do cinema. E nos levaram para mais perto de uma compreensão mais profunda do humano.
Ao longo da apuração, fiz várias incursões nesse mundo. De uma delas jamais pude esquecer. Havia no Rio Grande do Sul um padre exorcista. Ele não se apresentava com este título. Preferia dizer que era parapsicólogo , um nome mais palatável para uma modernidade que transforma demônios em negócios altamente lucrativos. Era um jesuíta. Grande, discreto, dono de uma erudição sólida. Vivia cercado de livros, escrevendo. E sua figura, chamada quando eventos aparentemente inexplicáveis aconteciam, inspirava respeito.
Ele raramente se comprometia com alguma conclusão diante do grande público. Comportava-se como um observador. Lamentei sua morte, anos atrás, por motivos egoístas: era alguém que eu teria compreendido melhor hoje, que sou mais velha. E sobre quem eu gostaria de escrever. Foi o único exorcista com estofo de exorcista que eu conheci até hoje. Penso que com ele morreu um mundo inteiro.
Naquela ocasião, ele me recebeu em seu quarto-escritório na instituição onde vivia. Contei a ele o que buscava. Conversamos um pouco sobre a natureza dos demônios, sem que ele jamais assumisse claramente sua participação em um legítimo ritual de exorcismo católico. Suas respostas eram sempre precisamente vagas. A certa altura, ele buscou uma caixinha de madeira em uma escrivaninha. Ali, ele guardava num fichário os dados das pessoas que, ao longo da sua vida, haviam lhe procurado com a queixa de que alguém da família estava possuído por Satanás.
Com gestos calmos, quase displicentes, ele pinçou dali alguns nomes. Embora tenha sentido meus olhos se acenderem de tanta excitação, lembro de ter ficado internamente um pouco decepcionada com ele. O excesso de confiança me pareceu temerário – não porque eu não a merecesse, mas porque as pessoas haviam confiado a ele algo muito sério e muito íntimo. E agora ele as expunha.
Anotei rapidamente os endereços no meu bloquinho de repórter, antes que ele se arrependesse. Pretensão injustificada, já que um homem como aquele, seja por sabedoria ou por velhice, sabe bem o que está fazendo e só faz o que quer. Eu estava muito excitada com o que tinha nas mãos – mas um pouco atormentada por aquele problema clássico de repórter: como bater na porta de alguém e perguntar se estava possuído pelo demônio?
Aprendi no exercício desta profissão tão peculiar que o melhor jeito de perguntar qualquer coisa, por mais espinhosa que seja, é perguntando. Eu não tenho técnica. Vou lá e pergunto. Mas não estava preparada para o que ouviria. Até então, estava achando uma investigação instigante – e um pouco engraçada. Quando comecei a bater nas portas que ele me havia aberto, tudo mudou.
Nenhuma das pessoas que abriu a porta achou estranho eu perguntar sobre possessões demoníacas. Quem achou estranho que não houvesse estranhamento era eu. Tipo: Bom dia, eu sou fulana de tal, repórter do jornal tal, e soube que aqui há alguém que talvez esteja possuída pelo demônio… . Nada. Ninguém me mandou para o quinto dos infernos ter uma audiência ao vivo com o próprio. Pelo contrário, imediatamente me convidavam a sentar na sua sala e me ofereciam café. Sentia que, de algum modo, minha presença era bem-vinda.
Este foi outro aprendizado essencial que a reportagem me deu para a vida: a importância de escutar de verdade. Se você busca algo – e é sempre melhor que não saiba exatamente o que é -, vá com o coração aberto. Tente entender e alcançar o outro sem se deixar enredar em seus próprios preconceitos ou na sua necessidade de mostrar que é mais esperto. Naquele momento, eu precisava suspender qualquer descrença, para poder escutar sem julgar. Eu não sabia de que tipo de demônio se tratava, mas era muito claro que para aquelas pessoas que me recebiam em sua sala de visitas, era do tipo sério. Do tipo que causava dor.
Não encontrei os demônios que buscava. Achei outros. A agenda do exorcista me levou a círculos subterrâneos e descendentes de sofrimento humano. Aquelas pessoas precisavam de ajuda. Tenho dúvidas se daquela que um exorcista poderia dar, mas de ajuda. De alguém que escutasse a sua dor e reconhecesse a legitimidade de seu sofrimento. Porque a dor, esta era inegável. As pessoas que conheci nesta peregrinação em busca de demônios eram algumas das mais tristes que encontrei em minha vida. Elas me olhavam com um desamparo profundo. E com as olheiras de quem não conseguia dormir à noite.
Lembro de dois casos especialmente dolorosos. Um dos que haviam sido levados ao exorcista para averiguação era um universitário de Porto Alegre. Morava com pai, mãe e avó num apartamento de classe média. Há alguns meses ele tinha começado a ser assediado por vozes. Pela história e pela fé daquela família, as vozes foram interpretadas por ele como sendo vozes de demônios.
Sentada no sofá da sua casa, tomando um café, eu o escutava. Ele era ainda um garoto e estava desesperado. Contou-me que os demônios moravam dentro da sua cabeça. Diziam coisas horríveis a ele, não permitiam que dormisse. Não o deixavam viver. Havia começado de repente, e ele tinha perdido tudo. Amigos, a faculdade, a vida como ela devia ser. Perto dele, olhando-o com profundo amor, sua avó também o escutava.
Poder falar e ser escutado sem que rissem dele fez com que se sentisse um pouco melhor. Naquele momento, pelo menos, nenhum demônio interior interrompia nossa conversa. Quando ele terminou de contar sua história, pensei que poucas coisas podem ser mais devastadoras do que ouvir vozes dentro da cabeça. Não interessa a causa, para aquela pessoa é totalmente real, mesmo que só ela ouça. E o fato de ninguém mais ouvir é algo da ordem do terrível. Este é um inferno que eu posso imaginar.
Em nenhum momento eu supus que os demônios do garoto não existissem, porque era óbvio que eles eram totalmente reais para ele. E se eram reais para ele, eram reais para mim também. Quando se aproximou a hora de ir embora, eu sugeri com delicadeza que havia várias maneiras de olhar para aqueles demônios. E que, se já haviam tentado a religião, talvez pudessem tentar também a psicanálise. Se achassem que isso poderia ajudar, eu poderia indicar alguém.
Mal larguei minha bolsa na redação do jornal, vinda da casa do garoto, e o telefone tocou. Era a avó do menino, falando baixinho. Se eu pudesse indicar alguém para ajudar, ela o levaria. Indiquei um psiquiatra-psicanalista que não se limitaria a encaixá-lo em um manual de doença mental. Achava que ele precisava de alguém que o escutasse – e não apenas o entupisse de remédios, como se tudo fosse patologia. Não seria eu a trocar uma fé por outra. Soube que ele foi.
A outra porta aberta que nunca pude esquecer é bem mais triste, porque não havia nenhuma avó amorosa. Quem me recebeu foi a mãe. E ela tinha certeza de que havia engravidado do demônio. Levou-me para o quarto escuro de uma casa lúgubre. Havia sol lá fora, mas ela não o deixava entrar. Sentada diante de mim, a mulher relatou uma série de fatos que supunha serem capazes de provar que sua filha temporona era obra de Satanás. Nenhum dos episódios relatados poderia ser interpretado como algo demoníaco. Pelo menos por mim.
Ao mesmo tempo, havia ali um ovo de serpente. Dava para enxergar como aquela mãe estava gerando um demônio bem humano. A menina estava na escola e tinha 6 anos quando eu a visitei. Fiquei pensando em como deveria doer ser filha de alguém que a via como a encarnação do diabo. E, portanto, não poderia amá-la. Para aquela mulher na minha frente, não era nem que a filha estivesse possuída – a menina era. Parecia-me que, se ninguém interrompesse aquela escalada, a criança não teria chance de ser outra coisa que não um demônio humano, já que toda a família compactuava com a crença da mãe. E este também era um inferno que eu podia alcançar.
Saí de lá desolada. Ao mesmo tempo aliviada porque estava de novo no mundo em que o sol entrava. Podia imaginar o quanto aquela mãe sofria com a sua crença, mas uma parte de mim não a perdoava por enxergar sua filha com tão pouca generosidade. Ela era só uma criança. E sua mãe não apenas era incapaz de protegê-la e cuidá-la, como denunciava ao mundo que ela era o próprio Satã. Seria muito difícil para a menina crescer sem tornar-se o diabo que sua mãe jurava que ela já era desde o útero. Fiquei desejando demônios mais semelhantes aos que vi em filmes de Hollywood. Do tipo que arranca sangue e vomita gosmas verdes, mas que dá para tirar do corpo porque é estranho ao humano.
O que posso afirmar é que a agenda do exorcista me levou a um inferno de demônios demasiado humanos. Nem por isso menos assustadores e destrutivos. Seria fácil se eles pudessem ser arrancados como lombrigas porque nosso corpo não lhes pertence. Infelizmente ou não, acho que pertence. Exorcizar demônios que são tão nossos quanto nosso fígado e nossas memórias exige coragem, honestidade e um caminho mais longo rumo aos subterrâneos de nossa condição humana. Sempre em frente – e sempre para dentro.
Desde então, me assusto menos com os demônios fora de mim. Sei que os meus próprios vão me dar mais trabalho. Gosto daquele cumprimento oriental que diz: o deus que há em mim saúda o deus que há em você. Mas eu o complementaria: os demônios que existem em mim saúdam os demônios que existem em você. Demasiado humanos, podemos então nos olhar com menos medo – e com mais compaixão.
Lembro de ter perguntado ao velho exorcista se ele acreditava mesmo em demônios. Ele disse que sim. Não me disse o que pensava de sua natureza. Limitou-se a me dar nomes e endereços para que eu empreendesse minha própria busca. Uma proposta generosa, que só hoje compreendo melhor.
Fonte: Época